sábado, 25 de novembro de 2017

Um Apólogo - Machado de Assis




     

            Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha:
          — Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma cousa neste mundo?
             — Deixe-me, senhora.
          — Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça – resmungou a agulha.
         — Que cabeça, senhora?  A senhora não é alfinete, é agulha.  Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros.
            — Mas você é orgulhosa - ironizou a agulha.
            — Decerto que sou.
            — Mas por quê?
            — É boa!  Porque coso.  Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu? - gabou-se a linha.
            — Você?  Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu e muito eu?
            — Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados...
            — Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás obedecendo ao que eu faço e mando...
            — Também os batedores vão adiante do imperador - desdenhou a linha.
            — Você é imperador?
            — Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto...
            Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser.  Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana — para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha:
            — Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco?  Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima...
            A linha não respondia; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa, como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha, vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic-plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte. Continuou ainda nessa e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile.
            Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E enquanto compunha o vestido da bela dama, e puxava de um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha para mofar da agulha, perguntou-lhe:
            — Ora, agora, diga-me, quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas?  Vamos, diga lá.
            Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha:
            — Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico.
            Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça:
            — Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!




(Texto extraído do livro "Para Gostar de Ler - Volume 9 - Contos", Editora Ática - São Paulo, 1984, pág. 59.)
Adaptações para fins pedagógicos, a fim de que ficasse mais compreensível para alunos do Ensino Fundamental 2.
 Observação: Não consigo "ainda" organizar a paragrafação da postagem. Portanto, alunos, em caso de cópia manuscrita, mantenham a mesma distância da margem esquerda, cada vez que iniciarem parágrafos. Respeitem as margens para que seu trabalho apresente boa organização e estética. Fiquem atentos à ortografia e caligrafia. 
Bom trabalho! 

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